Guerra e Ciência A tecnologia e a estratégia do Im
A partir da Primeira Guerra Mundial, a comunidade científica iniciou sua colaboração com o esforço de guerra das grandes potências. No intervalo entre as duas guerras mundiais, os estados-maiores dessas potências já estavam convencidos da importância da pesquisa científica e tecnológica para as guerras futuras. Mas foi a partir da Segunda Guerra Mundial que os militares tomaram consciência do caráter estratégico da ciência e tecnologia(C&T) na guerra moderna. O máximo de tal esforço, não há dúvida, foi o Projeto Manhattan, que inaugurou a era nuclear e definiu o modelo de organização que viria a ser adotado, posteriormente, na pesquisa de natureza militar, principalmente nos grandes complexos científico-tecnológicos do pós-guerra, transformando a C & T em um dos elementos essenciais da estratégia.
Uma das conseqüências imediatas do uso da nova arma foi a revisão do princípio do aniquilamento - um dos conceitos fundamentais da estratégia. Esse princípio aplica-se quando uma potência deseja submeter o inimigo à sua vontade. Ou seja: o aniquilamento se impõe quando ele se nega a aceitar a rendição incondicional. Sua aplicação visa tão-somente o rompimento da vontade do inimigo de prosseguir na guerra, a partir da destruição de sua capacidade de realizar ações eficazes e de reagir de modo organizado. O princípio do aniquilamento foi aplicado nas duas guerras mundiais. Ao término da guerra contra a Alemanha nazista, admitiu-se que ele passaria a ter maior emprego nos conflitos futuros. Mas a decisão alcançada no Pacífico, com o lançamento de bombas atômicas no Japão, comprometeu a validade desse pressuposto, ao introduzir um terrível complicador no cálculo político-estratégico - a arma nuclear.
Na realidade, ao final da Segunda Guerra Mundial, a política já não mais dispunha de um meio capaz de resolver conflitos futuros que implicassem riscos de guerra, dispunha somente da estratégia clássica - insuficiente em face do novo desafio. No momento em que a estratégia ultrapassou definitivamente os limites do teatro de guerra, passando a abranger as relações entre potências também na paz, a política obrigou-se a buscar outros caminhos em face do desafio nuclear - embora a perspectiva da guerra continuasse presente. É claro que uma perspectiva que impusesse com maior freqüência o princípio da moderação. Aliás, imposição nada inédita, já que a política historicamente sempre conduziu a guerra - e nela interferiu - ou aumentando ou diminuindo a intensidade da violência, impedindo-a de assumir a sua forma absoluta.
De certo modo, formou-se desde o início da Guerra Fria, quando se rompeu o monopólio nuclear norte-americano, um consenso em torno da desqualificação da arma nuclear como instrumento político. Mas, paradoxalmente, ele não excluiu o recurso à resposta nuclear no planejamento estratégico-militar das potências nucleares. No caso de confronto direto entre os Estados Unidos e a União Soviética, as respectivas hipóteses de guerra abrangiam tanto os patamares nucleares quanto os patamares convencionais da escalada. Mesmo assim, dada a simetria entre essas duas superpotências - dotadas de capacidade de primeiro e segundo golpes, capazes de proporcionar um cenário de destruição inadmissível -, a guerra nuclear entre elas tornou-se impensável. Assim, o caminho encontrado pelos EUA e pela URSS para administrar a bipolaridade foi a estratégia da dissuasão - que, em tese, baseia sua credibilidade na própria função da arma nuclear: a de aniquilar a intenção ofensiva do adversário.
Em face da nova realidade (da realidade nuclear), reduziram-se significativamente as situações favoráveis à aplicação do princípio do aniquilamento no caso de guerra convencional. Entre potências nucleares simétricas só a ameaça de rendição incondicional iminente poderia induzir a parte em desvantagem a usar seu arsenal nuclear. Ou seja, só a ameaça de aplicação de tal princípio já seria suficiente para introduzir a arma nuclear no conflito armado. Uma potência não-nuclear, por sua vez, em face de uma potência nuclear teria de limitar o alcance do seu objetivo e reduzir a intensidade da ação militar, de modo que não se configurassem as conseqüências do aniquilamento - assim como entre potências nucleares assimétricas, a mais fraca submetendo-se a essa restrição.
Não há dúvida de que a estratégia da dissuasão reduziu o risco da guerra nuclear, mas não inibiu a corrida armamentista entre as superpotências. O equilíbrio nuclear apoiou-se na credibilidade da dissuasão, mas sua estabilidade só foi possível à medida que avançavam os entendimentos sobre o controle de armas entre os EUA e a URSS. Esse controle, por sua vez, não deteve o avanço daquela corrida, que se radicalizou com a aposta norte-americana no projeto Iniciativa de Defesa Estratégica - popularmente conhecido como "Guerra nas Estrelas". Aumentando a aposta no desenvolvimento de novas tecnologias, os Estados Unidos alcançaram a vitória no conflito Leste-Oeste sem a necessidade da batalha decisiva. Assim, a Guerra Fria foi ganha por quem sustentou a bipolaridade com uma economia forte e próspera, por quem teve a determinação de apostar na busca da superioridade tecnológica - e por quem obteve supreendentes avanços científico-tecnológicos aplicados à arte da guerra.
Com o colapso do império soviético, os Estados Unidos tornaram-se a única superpotência no cenário da política mundial. Hoje, são a única potência com capacidade militar para sustentar uma presença global. Ou melhor: capacidade militar suficiente para intervir unilateralmente onde seus interesses vitais estiverem ameaçados. Estão determinados a modelar a nova ordem mundial de acordo com os seus próprios interesses e não estão dispostos a ceder seu lugar. Mas para sustentar essa determinação estão investindo, antes de tudo, no campo da segurança - na perpetuidade da condição de única superpotência. Para tanto, os EUA buscam a invulnerabilidade em face de qualquer ataque nuclear, assim como a capacidade militar plena de aniquilamento de qualquer inimigo.
Durante a Guerra Fria, as duas superpotências dependiam da política de destruição mútua assegurada para a dissuasão recíproca de uma guerra nuclear. A idéia era tornar suicida um primeiro ataque ao garantir que o outro lado fosse capaz de revidar. Em 1972, foi firmado entre os Estados Unidos e a União Soviética o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (Tratado ABM), com a finalidade de impedir que essas superpotências se tornassem invulneráveis. A decisão norte-americana de construir um escudo antimísseis, tendo em vista alcançar essa invulnerabilidade, é obviamente uma decisão de denúncia unilateral do Tratado ABM. A finalidade principal desse escudo não é convencer os Estados fora-da-lei a não tentar chantagear os EUA com um ou dois foguetes que tenham ogiva nuclear. Na realidade, ele visa subtrair de qualquer potência a capacidade de ataque nuclear (de primeiro ou segundo golpe) contra o território continental norte-americano - e, por extensão, ele visa dotar os Estados Unidos das salvaguardas para agir impunemente em um conflito nuclear.
Não há dúvida de que alcançada a invulnerabilidade nuclear os EUA terão alcançado as condições para usar sua capacidade militar de aniquilamento sem restrições - tanto nuclear quanto convencional. Em termos convencionais, sua capacidade já foi empregada contra potências mais fracas - no Golfo, na Bósnia, em Kosovo e no Afeganistão -, configurando situações de combate de alta intensidade. Já, em termos nucleares, o governo Bush está disposto a deixar de lado o antigo tabu contra o uso da arma nuclear a não ser como último recurso. O documento Revisão de Postura Nuclear, de conhecimento público recente, propõe reduzir o número global de ogivas nucleares, mas amplia as circunstâncias que justificariam uma possível resposta nuclear. Para atender a essa última proposição, o Pentágono está preparando planos de contingência para o uso de armas nucleares contra pelo menos sete países (China, Rússia, Iraque, Coréia do Norte, Irã, Líbia e Síria) e para produção de armas nucleares menores para uso em certas situações de batalha. Três são as contingências possíveis de uso da arma nuclear: contra alvos capazes de resistir a ataques não-nucleares; em retaliação a um ataque nuclear, biológico ou químico; em caso de situações imprevistas.
Capacidade militar suficiente para intervir unilateralmente, onde seus interesses vitais estiverem ameaçados, os EUA já têm. Em Kosovo, dispensou a autorização do Conselho de Segurança da ONU - no Afeganistão, o apoio da OTAN. Como superpotência, nada os impede de agir unilateralmente na solução militar de um problema. No entanto, para manter tal capacidade eles se obrigam a buscar constantemente soluções tecnológicas para seus problemas militares, tendo em vista a obtenção da eficácia de suas armas e da eficiência de suas forças. A tecnologia tem que responder às necessidades de mobilidade estratégica, de precisão das armas, de supremacia aérea, de alta intensidade dos combates e de eficácia do seu dispositivo nuclear. Sem atualização tecnológica não será possível aos Estados Unidos a manutenção de sua capacidade militar de intervenção unilateral, nem de sua capacidade militar de aniquilamento.
Os Estados Unidos não podem intervir em toda parte. É uma conclusão óbvia. Mas, segundo o discurso da administração Bush, devem estar preparados para enfrentar todas as possibilidades de ameaças aos seus interesses nacionais - devem ser capazes de intervir para proteger seus interesses estratégicos. Prossegue o discurso: eles deverão enfrentar ameaças futuras à sua segurança realizando ataques preventivos onde e quando forem necessários - deverão ser os primeiros a atacar. Essa diretriz é uma ruptura com a estratégia da dissuasão que os EUA usaram durante a bipolaridade - ou melhor, é a essência da estratégia do império.
Geraldo Lesbat Cavagnari Filho é Fundador e coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp e professor convidado do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.